A Reforma do Pensamento

Mário Freire
Doutorando em Ciências da Informação
Mestre em Educação e Desenvolvimento Humano, Psicoterapeuta,
Consultor em Desenvolvimento Gerencial e Organizacional.
Diretor da Pegasus Desenvolvimento e Consultoria Ltda.

 

Extraído do livro A Cabeça Bem-Feita, de Edgar Morin, Editora Bertrand Brasil, 1999, pp. 87–97.

“Sei tudo, mas não compreendo nada.” — René Daumal

Recordemos o segundo e o terceiro princípios do Discurso sobre o Método:

  • “Dividir cada uma das dificuldades que examinarei em tantas partes quanto possível e necessário para melhor resolvê-las.”

  • “Conduzir meus pensamentos em ordem, começando pelos assuntos mais simples e fáceis de conhecer, para atingir, pouco a pouco, o conhecimento dos assuntos mais complexos.”

No segundo princípio, encontra-se o conceito de separação; no terceiro, o princípio da redução. Esses princípios nortearam a consciência científica.

O princípio de redução possui duas ramificações. A primeira é a redução do conhecimento do todo ao conhecimento das partes. Hoje, compreendemos que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo — e vice-versa —, surgindo daí uma visão sistêmica, em que o todo não é reduzível às suas partes.

A segunda ramificação limita o conhecimento ao que é mensurável, segundo o axioma de Galileu: só se deve descrever os fenômenos com base em quantidades mensuráveis. Essa limitação, entretanto, exclui conceitos que não podem ser expressos matematicamente, como o ser, a existência ou o sujeito. O que Heidegger chamou de “a essência devoradora do cálculo” fragmenta os seres, as qualidades e as complexidades, levando à “quantofrenia” (Sorokin) e à “aritmomania” (Georgescu-Roegen).

Esses princípios ainda dominam a tecnociência, mas hoje são amplamente questionados. É preciso recorrer ao pensamento de Pascal, que afirmou:

“Como todas as coisas são causadas e causadoras, mediatas e imediatas, sustentadas por um elo natural e imperceptível que liga as mais distantes e diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer as partes.”

Há, portanto, necessidade de um pensamento que:

  • compreenda que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo;

  • reconheça fenômenos multidimensionais sem isolá-los;

  • entenda que a realidade é, ao mesmo tempo, solidária e conflituosa;

  • respeite as diferenças sem perder a noção de unidade.

É necessário substituir um pensamento que separa por um pensamento que une; um pensamento redutor por um pensamento complexo — no sentido de complexus: o que é tecido junto.

Ciências

As duas grandes revoluções científicas do século XX prepararam o caminho para a reforma do pensamento.

A primeira, com a física quântica, derrubou o determinismo e introduziu a incerteza no conhecimento científico. A segunda, com a teoria dos sistemas, substituiu o reducionismo pela compreensão de conjuntos organizados.

Essas revoluções trouxeram à tona a complexidade, mostrando que leis simples não explicam a totalidade da realidade. A partir da cibernética e da teoria da informação, surgiu a noção de auto-organização — capaz de conceber autonomia, algo impossível na ciência clássica.

Pensadores como Bachelard, Popper, Kuhn, Lakatos e Feyerabend redefiniram a racionalidade e inauguraram uma nova maneira de compreender o conhecimento.

Alguns cientistas também assumiram o papel de filósofos, conectando as duas culturas — científica e humanista — e contribuindo para uma cultura geral mais rica e capaz de refletir sobre os problemas fundamentais da humanidade.

Literatura e Filosofia

Enquanto a ciência reduzia a realidade, a literatura sempre revelou a complexidade humana. Autores como Balzac, Dostoiévski e Proust exploraram o indivíduo em toda sua profundidade emocional, social e existencial.

A literatura, ao contrário da ciência, não busca simplificar, mas revelar as contradições da vida. Ela nos mostra que os seres humanos são movidos por paixões, sonhos e conflitos.

A metáfora, muitas vezes desprezada pela ciência, é um recurso de conhecimento poderoso. Ela cria pontes entre realidades distintas, abrindo novas formas de interpretação. Como dizia o poeta: “A realidade é um clichê do qual escapamos pela metáfora.”

Mesmo nas ciências, a metáfora e a analogia são fundamentais para a criação de novas ideias e compreensões.

A Reforma em Todos os Níveis

A reforma do pensamento deve gerar uma forma de pensar contextual e complexa, capaz de lidar com a incerteza e de unir o que antes era separado.

O pensamento que une substitui a causalidade linear por uma causalidade circular, reconhecendo interdependências e múltiplas referências. Ele liga explicação e compreensão — a explicação busca objetividade, enquanto a compreensão requer empatia e abertura.

Compreender é um ato humano e relacional: não entendemos as lágrimas de uma criança medindo a salinidade de suas lágrimas, mas sim nos identificando com ela.

Os Sete Princípios do Pensamento que Une

  1. Princípio Sistêmico ou Organizacional
    O conhecimento das partes e do todo são interdependentes. O todo é mais do que a soma das partes, pois gera novas propriedades e qualidades — mas também pode restringir certas potencialidades das partes.

  2. Princípio Hologrâmico
    Cada parte contém o todo e o todo está presente em cada parte. Assim como cada célula carrega o DNA do organismo completo, cada indivíduo carrega em si a cultura e a sociedade a que pertence.

  3. Princípio do Circuito Retroativo
    Rompe com a causalidade linear: causa e efeito interagem em ciclos de retroalimentação. Esses circuitos permitem a autorregulação e também podem amplificar comportamentos, como em dinâmicas de conflito ou crescimento.

  4. Princípio do Circuito Recursivo
    Produtos e efeitos são também causas e produtores. A sociedade produz indivíduos que, por sua vez, produzem a sociedade. É o ciclo da auto-organização.

  5. Princípio da Autonomia e Dependência
    Os seres vivos se auto-organizam e mantêm sua autonomia a partir da dependência do meio ambiente. Essa interdependência é a base da autoeco-organização, essencial tanto para indivíduos quanto para sociedades.

  6. Princípio Dialógico
    Reconhece a coexistência de noções opostas e complementares. Ordem e desordem, vida e morte, indivíduo e sociedade — todos coexistem em tensão criativa.

  7. Princípio da Reintrodução do Conhecimento em Todo Conhecimento
    Todo saber é uma reconstrução feita por uma mente inserida em uma cultura e em uma época. Isso restaura o papel do sujeito e reconhece o caráter interpretativo de todo conhecimento.

Conclusão

A reforma do pensamento é paradigmática, pois trata da forma como organizamos o saber. Ela nos permite uma visão mais ampla, ética e humanista do mundo.

Essa reforma une as ciências e as humanidades, favorecendo o surgimento de uma nova cultura, mais consciente e integrada.

O verdadeiro humanismo não é mais o da dominação, mas o da solidariedade entre os seres humanos e sua relação essencial com a natureza e o cosmos.

Pensar de modo complexo é também agir com responsabilidade, ética e cidadania.

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Mário Freire

Doutorando em Ciência da Informação, Mestre em Desenvolvimento Humano, especialista em Psicodrama, Coach, Arteterapeuta e Diretor da Pegasus. Atua com consultoria, treinamentos e processos de transformação organizacional no Brasil e no exterior.

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